Lisboa e a insustentável vergonha de si


Este não é um relato fiel de uma única conversa, mas sim um retalho organizado de muitas conversas que tenho tido com consumidores ao longo destes quase 4 anos de vida dos vinhos Hugo Mendes. Pensei em usar um cenário surrealista para dar uma corzinha ao texto, contudo, não encontrei nenhum mais surreal que a própria loja "Vinhos de Lisboa", local onde boa parte destas conversas aconteceram.

- Ah... olha o "Lisboa". Gosto muito do seu vinho!

- Boa! Já conhece!

- Sim, provei com uns amigos. Vou-lhe ser franco. Ao princípio pareceu-me fraco, sem grande interesse, mas depois começou, não sei explicar... a fazer-se sentir melhor... apeteceu beber mais e mais... olhe... quando démos por ela já tinha acabado a garrafa.

- Percebo-o perfeitamente. Sabe que é isso mesmo que procuro nestes vinhos. Que se revelem "ao longo do copo", que é como quem diz... que saibam bem e não que ganhem concursos, que não enjoem e que criem desejo à medida que os descobrimos. No fundo... que sinta prazer durante toda a garrafa e não apenas no primeiro gole.

- Isso, foi isso mesmo que senti! 
E já agora, parabéns pelo nome que escolheu para o vinho. Está muito bem pensado!

- Hugo Mendes? É assim um nome tão bonito? - respondi rindo, mas já adivinhando o que viria a seguir.

- Não... Lisboa - respondeu com ar trocista - Não sei como conseguiu, mas é genial.

- O vinho não se chama Lisboa. Chama-se Hugo Mendes. Lisboa é a designação de origem.

- Ah não? Mas... aquilo aparece em destaque... ah... - mudando de uma expressão de admiração para ironia - ... grande golpe de marketing então... Brilhante! E deixaram-no colocar aquilo no rótulo?

- Repare. O vinho chama-se Hugo Mendes e é da região de Lisboa. Está tudo legal, o rótulo é aprovado pela CVR que aliás, devo dizer... gostou bastante da ideia.
O que se passa é o seguinte: Este projecto pretende ser uma interpretação da região e suas castas. Quero explorar identidade e especificidade, por isso foi sempre minha ideia que o designativo de origem apareca em destaque.
A região é mais importante que o nome de quem o faz. Entende?

- Pois, estou a ver... mas estas letras estão de forma a que parecem uma marca. Não é de propósito?

- Não. Existe a necessidade de que tudo tenha um sentido estético, mas não houve intenção de os fazer passar por marca, apenas procurámos que a leitura do rótulo se faça de acordo com a visão do projecto. Origem primeiro, produtor depois. Curiosamente, a CVR percebeu logo isso.

- Não é de proposito? (perguntou novamente com ar sarcástico).

- Não, até porque... qual seria a vantagem?

- Um vinho "chamado" Lisboa? Estou certo que vende mais!

- Infelizmente... está errado. E se lhe confessar que tem funcionado mais como repelente do que como um chamariz?

- A sério?! Não acredito!

- Pois, mas olhe que é verdade. Senão repare:
  • No norte do país tenho uma dificuldade imensa em que lhe sejam dadas oportunidades. A picardia com Lisboa, que sempre julguei ser só uma má piada... olhe... afinal não é!
  • Em Lisboa, muitas vezes é encarado, por quem não o conhece, como uma tentativa de entrar no mercado de objectos de recordação. Só que... não é barato que chegue para isso e ao contrário do que se pensa, o facto dos demais produtores terem vergonha da região não ajuda a que "Lisboa" seja encarado como uma mais valia. Não se esqueça que esta região ainda é associada ao volume a baixo preço e não à qualidade dos seus vinhos.

Ainda há outro risco, sabe qual é?
Se por acaso me aborrecer com a CVR ou tiver um vinho que saia dos padrões deles, serei obrigado a deixar cair a característica mais identitária da imagem destes vinhos. Nesse caso, todas as referências a Lisboa terão de sair.

- Como assim?

- Só posso usar a palavra Lisboa porque os vinhos estão certificados pela CVR da região ... de Lisboa. Caso eles não o façam, vejo-me impedido de comercializar o vinho. Se o decidir fazer à minha responsabilidade terei de omitir todas as referências à região.
Mas consigo dar-lhe uma prova em como a palavra Lisboa não é uma vantagem comercial.

- Fiquei curioso...

- Olhe aqui à volta. Esta loja só tem vinhos de Lisboa* e tem, como pode ver, as paredes repletas de vinho.

-Certo! O que procuro?

- Vá para o centro da loja, procure uma garrafa onde consiga ler a palavra Lisboa.






- Não consigo encontrar nenhum! Impressionante. Não fazia ideia!

- Não é? Mas é mais engraçado ainda. É comum os produtores questionarem-me sobre esta rotulagem. Explico, tal como fiz a si e ainda acrescento que não só o rótulo obedece a todas as norma legais, como qualquer produtor que assim o deseje pode fazê-lo também, exatamente da mesma forma. Posso garantir que a CVR adora a ideia de poder ter mais produtores com confiança na origem.
.
- E eles?

- Engasgam-se, às vezes ainda dizem que acham mal que eu o faça, mas perdem o argumento e partem para outro "problema" qualquer que lhes impossibilitem de o fazer.
A verdade é que o nome da região ainda não é um valor em si, tal como lhe demonstrei!

- Entendo. Mas também... outro produtor que agora queira fazer o mesmo já vai parecer que o está a copiar! Não?

- Por um lado sim. Na realidade não!
Se ninguém o fez antes foi por falta de vontade, portanto, nisso sou inocente. Contudo, isto não tem nada de novo e confesso que me impressiono com as questões que levanta. No Dão, por exemplo, era comum o nome da região "valer mais" do que o nome do produtor. Alguns produtores ainda mantêm vivo esse princípio (António Madeira, Álvaro Castro, Anselmo Mendes, Niepoort,. para dar alguns exemplos).Tem muitas regiões e sub-regiões em todo o mundo onde é a designação de origem que conta, muito antes do nome do produtor. Diria até que é o primeiro sinal claro de terroir que uma garrafa pode ter.

- Mas Lisboa está nas bocas do mundo, a cidade tem hype, não acha que pode ganhar com isso?

- Como lhe disse, até agora tenho encontrado mais dificuldades que portas abertas. Também é verdade que a minha intenção não é valer-me do nome e sim transmitir um sentido de lugar aos vinhos. Se no caminho conseguir contribuir para valorizar a região, melhor. Apesar disso representar um maior atrito e mais dificuldade para mim.
Tenho uma outra utopia aqui que é a de conseguir tornar isto num negócio mais justo e rentável para todos os intervenientes, desde o consumidor ao produtor de uva que continua a ser o elo mais fraco desta equação. Mas isso... é toda uma outra conversa! - Afirmei com um riso cansado.

- Pois é... olhe... gostei muito deste bocadinho . Muito obrigado pelos esclarecimentos. Felicidades para o seu projecto, julgo que tem algo bonito aqui. Estou certo que vai conseguir cumprir todos esses sonhos.

- Muito obrigado eu pela disponibilidade e pela amabilidade. 
Já agora... não teria interesse em tornar-se patrono? - Rematei com um riso... nervoso.


P.S.:Aproveito para dar os parabéns à CVR de Lisboa e à Maria Miguel que tem feito, junto com a sua equipa, um trabalho muito bom na divulgação e credibilização dos vinhos de Lisboa na cidade.
Muitos parabéns. Muito obrigado.
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*Loja da CVR de Lisboa no mercado da Ribeira - Lisboa

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