O crítico e os vinhos estragados


Uma tempestade eléctrica é um espectáculo colossal e de uma beleza difícil de igualar. Quem assistiu a uma já se deu conta da forma como nos faz sentir impotentes, insignificantes e vulneráveis. O mundo parece maior e nós mais pequenos, não é?

Tempos houve em que a ignorância dos factos fazia com que fossem entendidos como puras manifestações divinas. Dignas de provocarem reflexões e concomitantes acções. Cada um criava as suas explicações e conjurava os Deuses, da maneira que melhor lhe convinha para lhes valer nessas horas tão terriveis. Umas vezes resultava (e era bom para quem tinha "tido a ideia"), outras vezes não (e acabava com alguém a ter de pagar por isso). 

Sabemos hoje, que se trata de um fenómeno electrostático que necessita da conjugação de um punhado de factores para que aconteça. Seguramente, todos aceitamos que nenhum deles está relacionado com a fúria de Zeus ou as andanças de Thor. Ainda que o conhecimento desses mitos possa apimentar a contemplação do fenómeno (pelo menos para gajos amantes da fantasia e dos mundos feéricos como eu), o conhecimento que hoje possuímos sobre ele transformou-o num simples facto. Belo, mas indigno de ser mais do que um mero apontamento em qualquer telejornal. Mesmo nos da CMtv.
Ninguém duvida que a permanência da tempestade depende 0% das justificações avançadas pela observação ignorante e pelo conhecimento empírico que dai nasceu.

Um mito é isso mesmo, uma explicação intuída para um facto do qual não se conhece significado.

Não vou negar que vivemos dias muito estimulantes no que toca à diversidade de vinhos que temos à disposição. Até os exageros considero importantes para que se perceba a elasticidade dos perfis, conheça as potencialidades das castas e se criem bases solidas de conhecimento que nos permitam avançar com determinação e certeza. Tudo isto independentemente das filosofias que se seguem.
Este ambiente traz consigo a revelação de uma fraqueza a que o acréscimo de necessidade tem dado uma exposição embaraçosa. Há muita falta de conhecimento, principalmente por parte de quem critica e avalia os vinhos, para as questões técnicas e a forma como se manifestam no perfil dos vinhos.
Há uns anos que me pergunto se um critico tem de "saber fazer" para que a sua acção possa ser considerada crítica. Percebo hoje que a pergunta está mal formulada e a resposta é óbvia. Um critico não precisa saber fazer, mas é fundamental que saiba como se faz. Ou melhor, o que define um critico e o distancia dos seus colegas opinadores* é mesmo esse conhecimento dos processos e sua manifestação no produto à sua frente. Uma avaliação critica requer, quanto a mim, essa capacidade de desconstrução, do estudo das suas camadas e da forma como a partir do que sente se perceba como ali se chegou. E desenganem-se, uma avaliação crítica consegue ser independente do gosto pessoal. O que não consegue é desligar-se da noção de equilíbrio que o provador tem. O equilíbrio é o ponto chave e comum entre crítica e opinião.

Nos últimos tempos, cresceu a quantidade de vinhos com defeitos claros e evidentes que serão tudo menos manifestações de terroir, mas que nos são apresentados, como tendo os mais simples e puros sabores da natureza. É um facto que os sabores são da natureza, mas de uma fonte que não é a uva e seguramente que puro não é a palavra que escolherei para adjectivar a sua presença no vinho.
Destaco os quatro que mais me incomodam:

1) Um vinho que tem um forte sabor a massa crua ou massa pão... não expressa o terroir.
Estes aromas resultam do facto dos vinhos serem fermentados com pouco ou nenhum controlo de temperatura, normalmente, quando esta sobe acima dos 20-22ºC nos brancos ou 30-35ºC nos tintos.
A levedura, que é um fungo e não uma bactéria como já ouvi e li por ai, gosta de temperaturas próximas das nossas (apelidamos de organismos mesófilos). Acima dos valores supramencionados, actua fundamentalmente nas funções de crescimento e multiplicação. A sua concentração, no pico da fermentação, será muito maior que num mosto mais frio. Abaixo disso, trabalham mais numa base de sobrevivência e reproduzem-se menos. O excesso de temperatura faz com que o consumo de "alimentos" seja mais rápido e se percam alguns aromas, seja por acção enzimática, seja por evaporação. A maior temperatura também faz com que uma maior % acabe por morrer e dai, uma maior sabor a levedura (lembrem-se dos objectivos da batonage). Para quem está a pensar subverter este raciocínio com o argumento que as leveduras "selvagens" são seleccionadas pelos condições do terroir, e que logo, estes sabores serão diferentes entre terroirs, tire o cavalinho da chuva. A expressão do terroir, na parte que lhes cabe, dá-se pelos produtos de fermentação, formados**, libertos*** ou intocados. Neste caso, o sabor predominante é o mesmo, independente do terroir ou, mais irónico ainda, da origem das leveduras.
Como se evita: Cada produtor deve fazer os seus ensaios e chegar ao seus valores preferidos (para mim: Brancos entre 15 e 20ºC; tintos entre 25 e 30ºC), mas a solução é usar qualquer forma de arrefecer os mostos em fermentação, principalmente durante o primeiro terço da fermentação. pH mais baixo e acidez mais alta também podem ser uma boa ajuda.

2) Um vinho que sabe a suor de cavalo, estrebaria, carne crua, capoeira,..., não manifesta o terroir.
É possivelmente um vinho contaminado com Brett, os famosos fenóis voláteis que resultam da contaminação por uma estirpe especifica de leveduras. Fácil de reproduzir, difícil de erradicar. Não é sinal de identidade em lugar nenhum do mundo mas sim de condições de adega. 
Como se evita: Essencialmente com uma correcta desinfecção da adega e seus materiais e eliminação de tudo o que esteja contaminado e não possa ser devidamente desinfectado. Exemplo claro são as madeiras.

3) Um vinho com sabor a cola UHU ou a vinagre,..., não manifesta o terroir.
É muito possivelmente um problema de acidez volátil, o ácido acético da evolução natural do vinho. Resulta também da contaminação do vinho, especialmente por bactérias. Existem limites legais e muitas vezes os vinhos chumbam nas câmaras de provadores porque excedem esses limites. Não é que faça mal, mas passa a ser considerado outro produto. Vinagre.
Como se evita: Também carece, em cerca de 80% dos casos, de uma adega devidamente limpa e materiais desinfectados em condições. Mas pode também ser originária da sanidade das uvas ou dos cuidados em adega. Os tintos em fermentação são os mais susceptíveis a este tipo de contaminação. A resolução deste problema pressupõe, a meu ver, uma maior noção e atenção sobre o que se passa entre a uva e a garrafa. È muito importante conhecer como é que estas bactérias podem proliferar e agir a tempo (para mim, a maior parte das acções são físicas) Também aqui o pH baixo e a acidez alta são bons aliados.

4) Um vinho que sabe a cartão, a maçã oxidada ou a madeira em decomposição, molhada ou velha e/ou que tem uma cor evoluída,... não expressa o terroir.
É apenas um vinho oxidado. Quer apenas dizer que o mosto e/ou o vinho tiveram demasiado contacto com o oxigénio (no caso do mosto branco, este contacto não foi acompanhado das técnicas certas de clarificação) e este acabou por "queimar" o vinho.
Como se evita: Fundamentalmente evitando o contacto do vinho e do mosto com o ar. Cubas atestadas, uso de gases inertes, e em mosto branco, se for o caso, uma boa clarificação.

Ora bem. Nenhum destes defeitos (o primeiro não pode, em abono da verdade ser considerado um defeito) permite que o vinho expresse aquilo que traz da vinha. Pelo menos não na sua plenitude. Essencialmente porque a sua intensidade é muito maior do que a dos aromas naturais.

Mas o novo equilíbrio pode agradar o consumidor. Os defeitos podem estar em níveis que permitam conjugar-se com os aromas que sobrevivem do vinho e criar uma... sei lá... identidade nova. Nesse caso, não tenho problema algum em que o dito possa ser considerado um bom vinho. Mas do ponto de vista técnico não o é! Lamento. É-o apenas numa questão de gosto (bem como de marketing e credibilidade do produtor, na maior parte dos casos).
Aborrece-me que um conjunto de produtores - tenho certeza que por desconhecimento e paixão - tentem convencer os consumidores e os jornalistas que a presença destas características representa pureza de métodos, clareza de procedimentos, inexistência de manigâncias químicas. Não é verdade. Representa tão somente o desconhecimento, muitas vezes da origem dos defeitos, mas quase sempre, dos procedimentos para os evitar e deixar expressar o tão amado, anunciado e desejado...Terroir.

Reparem como me mantive afastado de qualquer filosofia ou abordagem à cultura do vinho. Isto porque estes problemas são transversais a todos. Nuns mais que noutros, mas é preciso que se perceba de uma vez que a qualidade de um vinho não está, só por si, ligada à filosofia que se segue mas sim à forma, o cuidado e o conhecimento com que é feito. Pode até no limite, haver correlações que dão essa sensação. Mas não é verdade que assim seja. 

Não tenho duvidas de que é ao critico - segundo a minha definição de crítico - que cabe o papel de destruir os mitos e explicar que afinal o relâmpago tem uma causa natural, que as explicações intuídas são bonitas, inspiram artistas, mas que a realidade não se compadece delas para nos contemplar com a mais bela das tempestades.

Toquem as sinetas, exultem de alegria. Ao contrário dos trovões, os defeitos do vinho podem ser evitados e originam sempre vinhos melhores e mais expressivos, alguns... até do terroir! 😉
Boas provas.
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* Que fazem falta e têm o seu papel. Julgo até que 2 ou 3 críticos à seria são mais que suficientes para um pais como o nosso.
** Formados: Muitos compostos, inclusivamente aromáticos, são formados durante a fermentação, decorrente das necessidades da levedura. 

*** Libertos: há moléculas aromáticas que necessitam de se libertar de outras para que o seu efeito se possa sentir (normalmente chamamos percursores de aromas).

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