O seu vinho é caro, disse o Besugo.


(...) 
- Ah sim... já ouvi falar no seu vinho, disse o Besugo.
- Espero que tenham sido coisas boas, respondi num sorriso envergonhado.
- Sim, sim, muito boas... foi aliás por isso que o chamei cá. Queria muito tê-lo no meu restaurante.
- Muito bom. De facto produzo pouco e gosto que os meus cliente entendam o meu vinho!
- Sim, aqui os nossos clientes são Reis. Sabe, recebemos aqui grandes tubarões, finíssimos atuns, poderosos espadartes, muitos robalos importantes e de vez em quando umas chaputas fresquíssimas. Tentamos ter os melhores vinhos disponíveis, como pode ver.
- Que bom. Estamos em sintonia então!

Aproveitei a pausa que sempre se faz entre a apresentação do vinho e o inicio da negociação  para observar em volta. Paredes grossas para suster bem a água, decoração magnifica, copia fiel da grande barreira de coral, tudo com muita cor e bom gosto.

- Então e a quanto me vende isso? Perguntou o Besugo.
- 10 euros por garrafa (respondi)
- 10 euros?
- Sim.
- Mas isso é muito caro!
- É? Depende.
- Depende de quê?
- Do preço a que for vender a seguir, do serviço associado, etc...!
- Encontro-o no supermercado?
- Não
- Então qual é o preço que ele costuma ter e onde o vende?
- 15 euros em garrafeira.
- Pois, está a ver? Um vinho desses aqui custará sempre 30€. Não vende!
- 30€? Pois entendo que não venda!

- Vocês são malucos, querem muito dinheiro pelo vinho! Afirmou o Besugo.
- O senhor é distribuidor?
- Não, sou restaurador, não se vê?
- Sim, mas se fosse distribuidor teria outro preço. Assim é mesmo o que lhe disse. Mas já agora, por curiosidade, a quanto teria de comprar um vinho destes para valer a pena tê-lo aqui?
- Não sei bem, mas para ai uns 5 ou 6 euros e já é muito para um preço em carta de 25 ou 27€.
- Então, estamos a falar de um ganho de perto de 20 euros brutos, certo? O que paga o cliente?
- Como assim, o que paga o cliente? Paga o vinho, não? Inquiriu atónito o Besugo.
- Tem uma garrafeira onde envelhece vinhos?
- Não!
- Tem climatização para os vinhos?
- Tenho uma arca de 20 ou 30 garrafas que um produtor me ofereceu. Serve muito bem para os brancos. Os tintos estão ali naquela prateleira.
- Tem quantos tipos de copos?
- Dois, estes aqui muito jeitosos que me foram oferecidos por um produtor e dão para tudo e uma flute para os "champanhes".
- Tem escanção ou alguém especialista na aquisição e gestão de stock, que aconselhe o cliente sobre a melhor combinação e que lhe rentabilize o negócio do vinho?... espere... não responda. Esta eu sei. Está na guelra... NÃO! 
Não acha que está a meter a mão nos bolsos dos produtores mas principalmente na carteira dos seus... como foi que lhes chamou?... Reis?
- Eh pá... alguém tem de pagar isto. São muitas despesas, muito pessoal...
- E é o vinho que tem de pagar tudo?
- Então queria que fosse o quê? A comida?
(até àquele momento estava mesmo convencido de que sim.).
- Já nós produtores, recebemos o vinho feito da vinha. Basta juntar água ao pé da planta e esperar umas duas semanas nos piores casos. O único trabalho que temos é mesmo paletizar e vender. Fazemos tudo sem staff. Qualquer um pode fazê-lo! :)

Voltei a admirar a sala para quebrar um pouco a tensão. Uma grande ostra, arrumada estrategicamente a um canto menos iluminado, abria-se e revelava uma belíssima pérola que passou a reflectir os feixes de luz difusa que perpassavam o vidro. Dois pinguins, ainda sem o casaco vestido, puxavam animadamente o lustro aos talheres nas mesas. Na cozinha já se sentia o buliço prévio às horas de lodo. Um cherne pomposo e de ar mal disposto nadava por entre as estações da linha fazendo reparos ligeiros mas firmes ora a um goraz que me pareceu estar a preparar um caldo de peixe ora a uma faneca que picava cebolas e chorava copiosamente. Não sei se pelas cebolas ou pela conversa ao telemóvel.
Um cantarilho regressava da dispensa com um carrinho que partilhava batatas maravilhosamente descascadas e caixas várias de Alga Fresca, o vinho do momento.

- Olhe Sr. Besugo, deixe estar. Se há coisa a que me comprometi nisto é que o negócio tem de ser sustentável, tem de respeitar o trabalho da minha equipa e tem de ser justo para todos. Está longe de ser o caso!
- Você assim não vende vinho nenhum homem!
- Não iria vender vinho algum com o negócio que o Sr. está disposto a fazer. Iria dar-lhe vinho para o Sr. fazer o favor de me dar cabo da marca. Não quero, obrigado!
- Sabe quantos carapaus me aparecem aqui todos os dias a oferecer vinhos bons a 3 e 4 euros?
- O pior é que sei sim senhor! ...  cardumes deles! 
Tenha um bom dia Sr. Besugo!

Enquanto me dirigia à porta, uma seria, ensaiava a vocal de uma canção retirada ao cancioneiro marítimo clássico que reconheci imediatamente como sendo "Não resistas mais Ulisses" composta pelo grande Baltazar Congro e celebrizada na voz cavernosa da magnifica Júlia Moreia. Por momentos passou-me pela ideia que uma boa sereia é bem capaz de vender mais garrafas que um escanção, mesmo que a qualidade não tenha sido engarrafada juntamente com o vinho. Fiquei triste. Ao mesmo tempo, um quarteto de três espadas e um mero (o gordo do contrabaixo, claro)  afinavam os instrumentos para tudo estar perfeito à chegada dos clientes.
Era noite de peixe, as mesas estavam reservadas para os três turnos há várias semanas.
Nada iria falhar! 


Este foi um exercício surrealista. Nada disto aconteceu na realidade. O nosso mercado é justo. Não é verdade que os maiores inimigos dos produtores são eles próprios. E... pelo amor de Poseidon... vê-se logo que transportar batatas desancadas e vinho no mesmo carrinho é tanga, o HACCP nunca permitiria.

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