- Oh Mendes, mas tu não tens vinhas?


- Oh Mendes... Mas tu... não tens uma vinha?
- Não!
- Então como fazes vinho sem vinha?
- Compro a uva que quero a quem produz boa uva e em locais que me interessam!
- Mas assim não te limitas na qualidade?
- Como assim?
- Se não és tu quem trata das vinhas, como garantes que as uvas têm a qualidade que procuras?
- E quem te garante que as uvas teriam qualidade se fosse eu a tratar delas?

- Pois... nunca pensei nisso!
- Mas devias... 
- ...
- Honestamente, não sei de viticultura o mesmo que julgo saber de enologia e por isso, não me sinto [ainda] confortável para arriscar tomar conta de uma vinha sozinho. 
- Mas é assim tão difícil tratar de uma vinha? 
Vejo para ai tanta gente fazê-lo sem ser formado na área ou ter muitos anos de experiência...
- É... e não é!
- Confuso...
- Nada.
- Explica.
- Um vinho é uma coisa muito séria para mim...
- Pela forma como falas deles, não parece!
- ... compreendo, mas é! 
Como dizia, é uma coisa muito séria e como tal, não gosto de dar espaço para grandes acasos. A minha abordagem na adega só é minimalista no uso de produtos enológicos. Na escolha do que fazer, como fazer e quando fazer... não dou grande espaço a "empirismos". 
- Consegues dar um exemplo?
- Um exemplo não explica tudo, mas dou-te um fácil de entender e tu depois extrapolas para as outras operações.
- Tá... tá bem!
- Normalmente, um branco que fermente acima de 20-22ºC fica com o nariz dominado pelos aromas secundários, os que resultam da fermentação. Ora... mesmo considerando que as leveduras presentes são o resultado de uma seleção dependente do terroir, não acho que esses vinhos, de uma forma geral sejam a melhor expressão desse terroir. Para mim um branco tem de ser fermentado entre os 15 e os 20ºC para garantir que expressa ao máximo, a influência do terroir. Abaixo dos 15ºC as leveduras ativam outras vias metabólicas responsáveis pelos aromas a banana e fruto tropical. Portanto... não concordo nada quando me dizem que um vinho fermentado sem controlo de temperatura expressa melhor o terroir.
- Mas esses aromas não são dados pelas "leveduras de pacote"?
- É possível que essas leveduras tenham uma atividade mais forte nesse ponto, mas acredito que o facto desses vinhos serem fermentados entre os 12 e os 14ºC tenha muito mais influência que a escolha de leveduras em si.
- Ok... acho que entendi o teu ponto de vista.
- O que te estou a tentar dizer é apenas que a ideia de que um vinho natural ou pouco intervencionado, tem de  resultar da preguiça intelectual e física é pura e simplesmente uma charlatanice. E o contrário disso não é encher o vinho de tudo quanto é químico. A meu ver, o equilíbrio está na minimização da utilização de químicos (mesmo que não resultem de síntese) e na maximização do conhecimento. É este o meu mote.
- Assim como não existem só comunistas e fascistas como ambos gostam de fazer crer! 
- Precisamente. Boa comparação.

- Então mas, o que tem isto a ver com as vinhas?
- É o mesmo principio. Para explorar uma vinha, necessito ter um conhecimento que ainda não possuo, embora outros o façam com menos ou nenhum. Nada contra, apenas não o desejo para mim.
-ok, ok... Lá estás tu a ser irónico! 😅😂
- Não estou mesmo. Tal como se pode fazer vinho sem se perceber um caralho do assunto, também se podem produzir uva. A videira é uma planta muito resistente aos "maus tratos". Eu é que não tenho interesse nessa abordagem! Independentemente dos resultados.
- Pronto!
- Mas há um factor mais importante nesta história.
- Qual é?
- Quando me tornei produtor, fi-lo pela necessidade de explorar e estudar as castas Portuguesas. Era um trabalha que estava a meu ver, pouco feito, sobretudo com as castas predominantes na região centro/sul onde trabalho mais. Castelão, Fernão Pires, Vital...  Se iniciasse  logo com raízes, não teria a liberdade que necessitava, até para procurar dos locais "perfeitos"
- Mas não podes ter uma ou duas vinhas e comprar as uvas que queres experimentar a outros?
- Posso, e julgo que é por ai que vou evoluir. Mas repara, é preciso alguma disponibilidade financeira e estrutura que não tenho, por isso tenho de optar por uma antes da outra e esta, é a única a que posso chegar agora. A empresa não tem ainda estabilidade para suportar essa responsabilidade.
- Entendo.
- Por outro lado, A região de Lisboa (e a do Tejo onde entrei em 2020) têm ainda muitos produtores dedicados exclusivamente à produção de uva de qualidade a quem posso comprara uvas que correspondam aos padrões que anseio.
- Mas não são biológicas, pois não?
- Não. Estão num sistema chamado "proteção integrada" que é, a meu ver, um sistema bem equilibrado, muitas vezes até mais que o biológico. Viste a conversa com o Manuel Botelho no Unfiltered? Ele explica muito bem isso lá (37:20m).
- Não vi...😅
- Devias! 😂
- Vou ver então!
- Já que tenho de me cingir à compra de uva, tento escolher quem faz um trabalho mais consciente e respeitador, mais próximo da minha própria filosofia. O conhecimento na viticultura também é fundamental para uma menor e mais consciente intervenção e utilização de produtos. Neste ponto, também tenho um objetivo. 
Em regiões onde as uvas e os vinhos são normalmente comercializados a baixo preço, consigo mostrar-lhes [aos produtores de uva] que ao acréscimo de cuidados corresponde um acréscimo de qualidade que por sua vez vai originar vinhos mais valorizados que podem ser vendidos a preços mais decentes e com isso andar para trás na cadeia e pagar mais pelas uvas.
Ou seja, se produzem uvas melhores que me permitem fazer vinhos melhores, consigo, a medio prazo, pagar-lhes mais pelas uvas e legitimar as exigência que lhes faço.
- Tu tens muitos sonhos e muitas utopias já vi!
- Admito que sim, mas acredito que se fizer a minha parte para que se concretizem... logo acontecem. Afinal... a minha história, até a pessoal, está cheia de superações de espectativas.
Esta nem é das utopias mais românticas. É meramente económica. Em teoria, fácil de concretizar. E no limite, também não acredito que uma região que não se consegue valorizar e aumentar a qualidade dos seus produtos consiga ter futuro. Sem boas uvas não se fazem bons vinhos. Isso é indiscutível.

- Mas precisas vender muito vinho para que isso aconteça.
- Algum... bastante... sim... muito! ah ah ah.
- Pronto... vamos lá a isso então dar uma ajuda na concretização dessa utopia, já me convenceste. Vende-me ai duas caixas vá...
- Duas caixas? Boa. Com duas caixas tens direito a entrada direta para o clube de patronos.
- Patronos? O que é isso?
- Bem, patrono é alguém que ajuda a financiar o projeto, comprando, normalmente vinho quando ainda está em cuba, antes do engarrafamento ou, comprando duas caixas como tu estás a fazer agora. Passa a fazer parte de um clube que tem acesso a preços especiais todo o ano, mais algumas vendas especiais e exclusivas, mais... o que me for lembrando. Sobretudo são pessoas que sabem que estão a ajudar a fazer história. :)
A independência disto vem muito desse apoio, mais do que outro lado qualquer.
- Muito bem... vou gostar de fazer parte desse clube!
- Assim o espero. Muito obrigado!

Fim

Comentários

Vera Lima disse…
Gostei da entrevista, nua e crua, na verdade autêntica. Ficamos sem saber quem é o entrevistador?
Hugo Mendes disse…
Cara Vera,
Obrigado pelo seu comentário.
De facto, este dialogo é uma criação. É uma compilação de algumas perguntas que me fazem amiúde. Decidi junta-las todas! :)

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