Enologia... essa maldita!


Há muito que me irrita a desinformação e ganho de território por parte das ideias  anticientíficas. Este não é um fenómeno exclusivo do mundo do vinho e não passa de pura desinformação aliada às divertidas mas infundadas teorias da conspiração. 

A Enologia é um ramo da ciência e como outro qualquer, resume-se à procura e processamento de conhecimento numa área circunscrita. Não inventem, não desvirtuem e não se confundam, enologia é única e exclusivamente isto, uma ciência. Não tem partidos, não tem posições e não tem tendências. Mas pode ter maus "praticantes"? Claro, há alguma atividade humana que não os tenha?

O conhecimento assim adquirido serve dois "major" propósitos muito distintos:

1) Servir de base ao desenvolvimento de tecnologia, que no caso do vinho pode passar por, cubas com um formato especial, bombas que se pretendem mais gentis para as massas, forma como se queimam as barricas,..., até o mais complexo e transformador dos produtos enológicos, claro.

2) Suporte teórico que ajuda a entender o que ali se passa para uma melhor e mais assertiva tomada de decisão.

Estas duas vertentes não são conflituante (nem são antagónicas) e como bem sabem, andam muitas vezes de mãos dadas. Assim como o conhecimento da estrutura e funcionamento dos átomos não permitiu só a construção de armas atónicas também a enologia não serve só o propósito dos vinhos tecnológicos.
 
Sobretudo, o que me interessa aqui é que se perceba que a escolha de uma abordagem que permita expressar mais a uva e tudo o que ela traz da vinha não obriga, como muitas vezes se tenta fazer crer, ao abandono do conhecimento. Muito pelo contrário.

Desta forma, a prática de enologia, que consiste sobretudo na aplicação desse conhecimento, será transversal a toda e qualquer corrente de pensamento e abordagem filosófica. Os princípios científicos mantêm-se iguais, a forma como esse conhecimento é interpretado e utilizado é que pode variar.
Menos do que isto é charlatanice e aproveitamento da ignorância do consumidor.


O de menos...
Poderia aqui elencar tantos e tantos desvios e defeitos que resultam meramente de práticas deficientes e desinformação que depois nos tentam vender como expressão do terroir ou outra expressividade qualquer (já o fiz aqui). Não são! São meros acidentes que resultam apenas e só do facto dessas pessoas preferirem o empirismo sobre todos os outras formas de conhecimento (este tema merece ser desenvolvido).  Curiosamente, todos estas derivações acabam por toldar a expressão do terroir, precisamente o contrário do que é alardeado.
Imagino um conjunto de marinheiros a negar-se às laranjas porque o escorbuto é que é a verdadeira expressão da navegação. Ou um chef que nos tenta convencer que a verdadeira essência de uma sopa se mostra quando ela azeda. É só parvo, não é?

Perguntar-me-ão então se um vinho tem de ser isento de falhas e defeitos para ser considerado bom? Não, o que defendo não é nada disso. Há vinhos em que a identidade está, precisamente nesses desvios e nesses defeitos, muitas vezes voluntárias. O que afirmo é mais simples. Esses vinhos não serão nunca a mais pura e fiel expressão do terroir (mas podem ser melhores do que um que expresse o terroir na perfeição? Podem... obviamente!). Este não se mostra na oxidação, na acidez volátil nem em nenhum outro desvio.

Para que fique claro, isto não é, nem de perto, um ataque às abordagens orgânicas (biológico, biodinâmica... nem mesmo à nebulosa "natural") como muitas vezes se insiste em fazer crer. Nesse ponto será, quanto muito, uma defesa dessas abordagens que são constantemente manchadas pelo aproveitamento de quem tenta vender lixo disfarçado de vinho. E não leiam também que o contrário de um vinho que sabe a podre é um vinho que tem de saber a banada. Felizmente o meio termo é rico em boas opções, seja qual for a filosofia, não necessitamos forçarmo-nos aos extremos.

O Sulfuroso
O tema dos dias, a discussão mais acesa da atualidade é sobre o uso ou não do sulfuroso. Quem como eu se lembra do surgimento dos vinhos orgânicos, em força,  em Portugal, lembrar-se-á com certeza de que os primeiros eram exagerados de sulfuroso, já que era o único aditivo que admitiam. Esse exagero passou rapidamente a outro (a meu ver) que foi o de retirar por completo.
Não me quero alongar muito e sobre este assunto apenas quero deixar questões para que se pense nelas. Importante é afirmar que estou convencido que o sulfuroso (dióxido de enxofre) é um aliado poderoso que quando usado com conhecimento, nos permite fazer vinhos saudáveis e duradouros com níveis finais que não fogem muito ao encontrado nos vinhos sem adições**.
Ora bem... há fatores aqui que me fazem ter sempre um pé atrás em relação a estas posições extremadas do tudo ou nada... Deixo aqui algumas das minhas questões para fazerem a quem defende a não utilização de sulfuroso.
O enxofre da vinha é diferente do da adega? Na vinha é anjo e na adega é demónio? Em quanto, um vinho sem sulfuroso pode encurtar a sua vida? Conseguimos eliminar a utilização de sulfuroso de igual forma em regiões quentes e em regiões frias? E nos anos maus, tal como em 2021, que muitas uvas entraram já com muitos podres, conseguem fazer o vinho da mesma forma (mesmo quando têm vastos conhecimentos enológicos)?
E agora deixo, desculpem, a minha maior duvida:
Quem me garante que as afirmação de não colocar aditivos e sulfuroso são verdadeiras quando a maior parte destes vinhos nos aparecem sem qualquer tipo de certificação por qualquer instituição que garanta a veracidade das afirmações?


O demais...
Tal como na vida, na produção de vinho, sou liminarmente contra extremos e dessa forma, não aprecio também o uso excessivo de tecnologia (notem bem... não é excesso de enologia... enologia nunca é em excesso!). Os vinhos assim produzidos são resultado da aplicação de "fórmulas" e muitas vezes... dos míticos "pós", que demitem os enólogos de fazerem escolhas pois a uva é uma mera matéria prima que será sujeita a uma transformação programada com vista à obtenção de um produto uniformizado e previamente definido, fazendo na maior parte das vezes tábua rasa das características das castas ou dos locais (é também por isso que se acabam por arrancar castas autóctones em detrimento de castas "da moda"). Assim a modos que como aquela ideia que temos dos betos. Vestem-se de forma igual, usam os mesmos cortes de cabelo, pensam da mesma forma, fazem as mesmas escolhas pelos mesmos motivos... as diferenças acabam por ser poucas, mal recebidas e são sempre consideradas falhas inadmissíveis. São uma espécie de clones sociais. É assim que vejo os vinhos tecnológicos, uns betos insípidos e desinteressantes. Mas reforço, isso é para mim e para o grupo dos enófilos que são a menor fatia do consumo. Tenham isto bem claro. Os vinhos tecnológicos continuam a ser os preferidos pela esmagadora maioria dos consumidores. Quem quiser vender 1 milhão de garrafas, esqueça outro caminho que não seja este.
 Nas abordagens tecnológicas há muita enologia envolvida mas o enólogo pratica muito pouca

Há mais um detalhe aqui que merece, quanto a mim ser considerado. Faço uma diferença muito grande entre aquilo a que chamo "enologia de subtração" e "enologia de adição". A primeira diz respeito a técnicas que promovem a retirada de algo que não se quer no vinho. Filtrações e colagens são bons exemplos disto. Respeito e entendo quem ache que retira alguma verdade e genuinidade ao vinho*, mas não que afirmem representar um risco para a saúde de quem o consome. Não é verdade. A segunda, tal como o nome indica, consiste na adição de produtos que se destinam a fornecer ao vinho elementos que eles não traz da uva e/ou acelerar o tempo. São disso exemplo a mais simples das madeiras, passando pelas leveduras e acabando no mais vilipendiado, condenado  e proibido dos aditivos... os aromas. Aqui a coisa pia mais fino e em muitos casos, sobretudo nalguns estabilizantes e conservantes, já tenho algumas duvidas de que sejam inteiramente inofensivos.

Concordo inteiramente com todos os movimentos orgânicos quando afirmam que as abordagens tecnológicas foram longe demais e que podem destruir a essência dos vinhos. É algo aliás, transversal em toda a industria alimentar, sobretudo quando falamos de produções intensivas. Temos de repensar a forma como nos alimentamos e produzimos os nosso alimentos, sob pena até de condenarmos a nossa existência (não a do planeta... esse fica cá e tem tempo para se curar de nós!). Disso não tenho duvidas.

É importante que se perceba também que este excesso de tecnologia não nasce da malvadez dos produtores, da sua ganância (leva a ela muitas vezes, mas acho que não nasce dela) nem de um pacto com o diabo feito pelo "pai dos enólogos". Na industria alimentar dos nossos dias, o uso de aromas, conservantes e estabilizantes é uma constante, sobretudo nos produtos embalados e pré cozinhados (comecem lá a ler a lista de ingredientes que vão ver...). Quanto a mim, a justificação do seu uso vem em dois pontos. 1) O consumidor quer encontrar produtos com uma regularidade e consistência de aspeto e sabor que só se conseguem com a manipulação. 2) A necessidade decorrentes de ter preços cada vez mais baixos.


Comparando o de menos com o demais...
Não sei se já se deram conta, mas as abordagens extremadas tocam-se num ponto muito curioso. Quem faz o vinho foge sobretudo à duvida e tenta demitir-se da necessidade real de fazer interpretações e escolhas. Obviamente que isso também permite baixar os níveis de conhecimento necessários.

Felizmente para todos nós, o vinho é um alimento que se defende muito das más práticas e os problemas que transporta, raramente provocam algo mais perigoso que umas belas sessões de caganeira na retrete... se lá conseguirmos chegar a tempo 😬. Imagino o que seria se apresentasse a sensibilidade de outros alimentos... 
... nem quero pensar!


E Eu? E eu?
É precisamente ao meio termo entre estas duas formas de olhar para o vinho que chamo enologia interpretativa. Já me terão ouvido falar disto. Não se trata de uma tentativa de criação de um conceito, uma nova corrente filosófica nem do inicio de uma revolução. Confusões já temos muitas, não precisamos de mais esta. 
Basicamente consiste em usar o máximo de conhecimento para tomar decisões e intervir de forma a direcionar o vinho na busca do SEU equilíbrio (a única característica que é comum a todos os bons vinhos no mundo, nas sabias palavras de Charles Metcalfe). A necessidade de adicionar ou retirar diminui drasticamente porque a procura vai no sentido de deixar sair o vinho que está ali. Se quiserem a comparação, as uvas não funcionam como pequenas pedras que conjugo para construir a escultura que idealizei. São um grande bloco que desbasto a maceta e cinzel até que a forma nele contida se revele. 
Isso obriga a um trabalho muito mais chato, detalhado e minucioso na adega durante a vindima, com maior necessidade de presença e constante tomadas de decisão. 
Pode ser o inferno para quem tem de planear o trabalho, sobretudo quando não é a mesma pessoa que toma as decisões.
Confesso que não me vejo a fazer vinhos de outra forma e também confesso que dificilmente me deslumbro com vinhos que não tenham, de alguma forma, sido feitos desta maneira.

Por fim...
De uma forma geral, respeito todas as abordagens, filosofias e formas de estar. Percebo o papel de cada uma e sobretudo a sua necessidade. O mundo não poderia viver só de vinhos orgânicos e seria muito sem graça se só houvesse lugar para vinhos tecnológicos. Não respeito é desonestidade intelectual, muito menos a diabolização da ciência para justificar charlatanices.
Aborrece-me que olhemos para isto como se de um clube de futebol se tratasse e não consigamos discutir os prós e os contras de todas as abordagens de forma desapaixonada e construtiva. Sobretudo... não teríamos necessidade de vilipendiar conceitos só para fazer valer a nossa forma de olhar para esta magnifica bebida.

Há muito que, quando as modas entram, os produtores optam por se deixar levar na onda e não perder tempo a esclarecer ou a lutar contra o preconceito. É mais fácil (partindo do principio que há alternativa, não sei se há!) dar ao consumidor o que ele pede do que instrui-lo da inofensividade de algumas realidades ou da necessidade de outras ( "When you get what you want, but not what you need" - Coldplay in Fix you). Por outro lado aparecem forças opositoras que apontam o dedo (e bem, nalguns casos) a esses excessos para depois cometerem outros. 

Sendo este um depositário de pensamentos com uma ou outra opinião à mistura, admito que "amanhã", à luz de novas experiências e novos conhecimentos possa mudar nalguns pontos. São quase todos discutíveis, exceto um… a confusão sobre o que é, de facto, a enologia.
Por favor… não voltem a dizer que gostam, bebem ou fazem vinhos "sem enologia". Como se isso fosse significado de vinhos mais naturais ou com menos intervenção. Para mim é tão triste como estarem radiantes com um recém nascido nos braços mas não saberem qual foi a acção que despoletou aquilo.

Hugo

P.S.: Deixei, propositadamente a viticultura fora desta "conversa". Embora haja muitos paralelos entre o que aqui escrevi sobre a enologia, entendo que a viticultura, sendo uma ciência independente, tem as suas especificidades e merece ser discutida em separado. Também acho que a viticultura vai mais avançada na percepção de que se foi longe demais e é necessário recuar e repensar a forma como se cultiva a vinha.
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* Nos meus vinhos opto por não estabilizar nem filtrar a maior parte das referências, mas isso pode acontecer porque os meus circuitos comerciais aceitam que um vinho com alguma turbidez, precipitados tartáricos e "pé" não diz nada sobre a qualidade do vinho. A maior parte dos consumidores não aceita vinhos nestas condições.

** Mediante fatores de maturação, podem andar entre os 20 e os 30ppm (ppm - parte por milhão) em vinhos sem adição. Nos meus vinhos tenho médias de 40ppm para vinhos engarrafados na primeira primavera e até 60 ppm para vinhos com 12 meses de estágio. Os limites legais são 150ppm para tintos e 210ppm para brancos.







Comentários

Daniel Afonso disse…
Excelente, és dos poucos a enfrentar o touro pelos cornos, talvez ser ribatejano dê uma ajuda...
Hugo Mendes disse…
Obrigado Daniel.

Talvez por nunca ter tido coragem de me meter à frente deles! eh eh eh!

Mas julgo que vem mesmo do facto d enão dever favores a ninguém que "dita regras" seja o verdadeiro motivo da minha liberdade de expressão! :)
Abraço
Unknown disse…
Que grande artigo!! Vou sugeri-lo, muitas pessoas precisam de o ler.
Obrigado pela partilha.
Abraço
Paulo VAle
Hugo Mendes disse…
Muito obrigado Paulo. Grande abraço! :)

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